quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

merda!

A cozinha era grande e de azulejos já craquelados de velhos. Na sala não havia uma, mas o negócio da família, um salão de beleza. Morávamos em um dos quartos, o outro fora alugado, para ajudar nas despesas, para um contador – senhor já idoso que cheirava rapé [aquela coisa com cara de pimenta que faz a gente espirrar até perder o fôlego ou o senso]. No meio da cozinha uma mulher sem rosto – porque não me lembro dele – levanta um copo de água e afirma que está vendo o futuro de minha mãe através daquela água esbranquiçada. Eu criança ainda, talvez uns seis anos de idade, irei me acostumar com essas pessoas, figuras estranhas, participando das nossas vidas e entrando regularmente pela minha casa adentro, esmiuçando detalhes e intimidades. Mas nunca sem critica ou sem minhas defesas armadas. Minha mãe, mulher forte e brigona na vida, era frágil e carente na emoção, e carecia de acreditar em adivinhações, feitiços, misticismos de qualquer fonte. Vivendo rodeada por essas pessoas que se alimentavam ora de sua energia, de sua alegria e, obviamente, de suas finanças. Assim, vendo a menina na cozinha, ela pede: vai para o quarto que aqui vai ser conversa de adulto. Eu, menina, fingi que não ouvi. Não deixaria minha mãe sozinha com aquela mulher. Minha mãe repete, agora num tom mais seco: vai para o quarto que aqui não é lugar para criança. Eu não me mexo. Mulher mentirosa. Dali eu não sairia. Já irritada, minha mãe repete a ordem: sai, vai para o quarto que eu estou mandando. Diante da ordem eu não tinha saída, mas não podia sair sem deixar claro minha indignação, que saiu no formato de um grande e sonoro MERDA! Não vi exatamente de onde veio, mas me deu impressão de ter vindo junto com a última letra da palavra: as costas de uma mão vieram contra minha boca. Senti que algo bateu no meu dente que já estava amolecido. Eu me surpreendi e senti um gosto salgado na boca e algo quente escorrendo pelo meu queixo. Minha mãe usava uma aliança de ouro grossa, feita com várias pequenas jóias – prática comum naquela época e também de grande mau gosto. Quanto sua mão bateu no meu rosto, foi o anel que chegou primeiro e pegou em cheio o dente amolecido e parte dos lábios. Engoli meu dente. Não senti dor, só surpresa, espanto mesmo. Nunca havia levado um tapa do rosto! Minha mãe chorou mais que eu. Antes mesmo do tapa chegar ao meu rosto ela já se arrependera. Pediu para que alguém me acudisse. Vieram várias pessoas. Umas perguntavam se ela estava louca, outras pediam calma, e uma me levou ao banheiro para que eu me lavasse. Não senti dor, estava mole e os joelhos dobravam, estava surpresa. Havia levado um tapa mas sabia que eu estava certa. Com a confusão, a mulher e o copo ficaram no esquecimento. Nunca mais vi a tal mulher com suas adivinhações. Do tapa não lembro da dor, o dente nasceu de novo, como todos os outros que cairiam e nasceriam posteriormente e de forma natural. Só lembro do gosto da vitória, porque mesmo que por caminho tosco, não tive medo de dizer o que pensava, e consegui evitar que minha mãe fosse enganada. Esse esquema de defesa em relação à minha mãe se repetiria durante toda a minha infância e juventude. E ainda hoje me ocorre. Há pouco tempo, aconteceu com um amigo. Eu falei o que pensava sobre um assunto similar, mesmo antes de ouvi-lo completamente. Porque me veio a figura da mulher com o seu copo d’água esbranquiçado a ver futuros. Ele ficou bravo comigo, muito bravo. Gritamos e nos magoamos. Senti, então, o mesmo gosto de sangue em minha boca.
Mas meu dente, mesmo problemático, continua no lugar.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

ridícula

O sentimento de ridículo é uma coisa única. Ser ridícula nunca me assustou ou me deteve. Aprendi desde cedo que ser ridícula era o que eu podia fazer de melhor por mim. Desde então, já fui (e sou) ridícula. Não me importo. Só esse sentimento fora de época e lugar e que me comove e reforma tem me incomodado. Esse sentimento ridículo de um amor sem limite ou fim.

relatório

O Impossível acontece como tudo que é esperado, sonhado e acalentado. O próximo passo nem o Destino sabe. Aguarda minha vontade, meu desespero ou minha dor. Ou a piedade de um anjo, talvez. O Real não dá sinais de vida, só o Sonho alimenta a Loucura.

o dia

Noite aflita sem medo,
Madrugada longa e preguiçosa, talvez insone ou algo poética.
Espero, sem ansiedade mas com esperança, o dia, que trará o Sol
E a sutil possibilidade de um sorriso, um carinho, uma ternura?
E quem sabe o que mais?
Ou como será o dia?
E assim de sol a sol,
vivo dia a dia, hora a hora
E morro a cada segundo.

insuficiente

Já nem sei quem sou.
Perdi-me.
Já nem sei o que quero ser.
Perdi o rumo.
Já nem sei pra onde vou.
Perdi o caminho.
Já nem sei o que fazer.
Perdi o jeito.
Já nem sei o que desejo.
Perdi a vontade.
Já nem sei, só sei dessa lágrima
Que não cessa.
Dessa inexperiência e conflito,
desse querer o impróprio, o inatingível,
o inverossímil, o impossível, o inacessível,
de não ser o que sonho, o que gostaria de ser,
aquela que, ainda que transborde o maior amor do mundo,
não poderei ser.