Não quero. Mas devo. Tenho que me levantar. Estico as pernas. Espicho os braços. E seguindo o conselho do jovem Buda, tento pensar em algo que espere por mim. Que faça valer a pena me levantar, acordar. Dar importância. Sempre acho. Sempre.
Rezo para buscar forças sobre este tédio, esta apatia, esta não preguiça, mas desistência:
- "Com Deus eu me deito, com Deus me levanto. Com a Graça de Deus e do Espirito Santo..." . Economicamente.
Levanto, enfim. E me precipito para o banheiro. Escova na boca cheia de espuma. Tento acordar para um dia refrescante como promete a propaganda. Observo que os olhos não combinam com a boca, com gosto de menta -ou será hortelã?-, agora acordada e pronta para ensaio de um social sorriso. Lavo os olhos, despertando-os em busca de uma uniformidade convincente.
O rosto, as mãos... me apresentam.
Espelho à frente. Olho em meus olhos. Meu duplo. E como num filme de Bob Fosse, repito, com resignada ironia: "It's show time that!" E começa um novo "round".
Aplausos e agitação: touro na arena. Inicia-se o espetáculo sangrento.
Para o delírio e deleite da platéia sedenta.
Aceno para a assistência. Último escárnio - um sorriso de creme dental e olhos pintados de vivo com lápis crayon.
Fingimos o embate. E às vezes parecemos -ora um ora outro- mortos. Como num acordo tácito, nunca dito. Sabemos que nosso real adversário nos observa, e nos aguarda, na platéia. Por isso continuamos o diário duelo de entretenimento nesse jogo de vida e morte. Enquanto nos observa, o fatal inimigo não entrará na arena. E nos poupamos de destino mais cruel - até o próximo inevitável e surpreendente combate.
Nas horas de folga saímos para passear, ver o verde, ver o sol, temos em comum o amor à vida. E o medo.
- O touro e eu vivemos em delicada harmonia.
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